sexta-feira, 16 de julho de 2010

Um Conto a Dois

Eram dois corações, um na mesa, outro na estante. um era refeição, o outro escultura. o da mesa, ainda tava quente, recém tirado do fogo, gostinho de comida preferida. o da estante, se não fosse pela poeira, daria vontade de abrir e ler. não que precisasse de leitura para decifrá-lo, pois este era bobo. era entregue. mas era o coração que continha as letras que formavam as palavras que formavam os períodos da história dos contos. o outro, aquele do fogo, só fervia, borbulhava, fazia salivar. o empoeirado era rígido, tinha aquela forma e não poderia jamais deixar de ser aquilo, aquela cor, aquelas palavras, artérias e mesmo imutável, mesmo fixo e invariável era arte, era beleza. o do prato era maleável, daquela fervura poderia sair qualquer coisa, daquele cheiro convidativo poderia vir qualquer forma, reação, era o nada e o tudo, era uma aposta, sem qualquer segurança, mas com uma infinidade de expectativas.
Mas esse conto não vem descrever a diferença desses corações, ele vem para contar a história de cada um e de todos. Com as palavras que formam os períodos da história dos contos, mas sem deixar de falar de toda a fervura e sedução. ele vem para tentar explicar essa magia que acontece entre dois lados.
Eram também duas vidas, uma que explodia, outra que sentia. eram também duas cabeças, uma que pensava, outra que praticava. o mistério está nesse pontinho de elo entre os opostos. e era aí que eles se encaixavam. que sentiam o encaixe das vidas, das cabeças, da história e principalmente dos corações.
Dava gosto de ver que mesmo após tantos anos passados, apesar de todos os comentários ácidos dos que estavam em volta, dos giros e piruetas do mundo ainda se via aquele brilho no olhar, aquelas mãos enrugadas se tocando em plena sintonia. A verdade é que o tempo foi coadjuvante no meio disso tudo, ele não achou espaço para entrar agora nessa história, por isso não há preocupação com o quando, muito menos com o onde, só cabe falar aqui de emoções, sorrisos, ternura e de alguns copos lançados na parede, de algumas ameaças de morte e de beiras do abismo, mas nada que ultrapasse a barreira do sentir para encontrar o mundo do tocar.
É verdade que nem sempre tudo eram flores, mas foi por causa de uma delas que posso escrever isso tudo hoje. não bem exatamente da flor em si, eram rosas ou lírios ou flores campestres, me desculpe, mas a memória já está falha. o que fez toda a diferença, não foi o fato de dar-lhe flores em toda comemoração - pois naquela época era assim que fazíamos. o que inverteu meu mundo num pontapé só, foi a conversa que tive com o dono da floricultura. vocês sabem... essas pessoas são dotadas de uma espécie de sentimento universal, como se já tivessem vivido antes e passado por todo e qualquer tipo de relacionamento. digo relacionamento porque eles sabem até se é amor ou não. sabem o que dizer, como dizer, sabem das cores e dos cheiros, e se duvidar, até do gosto do seu. foi quando ele me indicou as amarelas - agora me lembrei - margaridas amarelas. dizia ele: "margaridas conseguem manter a agitação presa pela calmaria das pétalas claras ao seu redor. e amarelo é pela sabedoria que precisamos para levar um amor consigo. porque o casamento, meu caro, é como tocar piano. a gente precisa saber exatamente quando uma nota só não faz música, quando há necessidade do junto, de dois. leve as margaridas amarelas, pode confiar." foi quando me deparei pensando na idade do rapaz, no máximo 25. como ele conseguia me passar tanta confiança e certeza do que dizia? achei melhor não perguntar e aceitar as flores e o embrulho. pensei cá comigo "esse povo sabe de tudo. ele deve tá certo."
Muito tempo depois eu fui saber que não poderia haver escolha mais acertada do que escutar esse tal moço. mas como essa história não é minha, cabe dizer que a partir deste dia passei a ter um novo vício, como fumar um cigarro depois do almoço ou ligações de boa noite. todos os dias ia aprender com ele sobre as flores, e os cheiros e os amores, bromélias, crisântemos, orquídeas, violetas e assim como eu tinha o vício de ir lá todos os dias, quando estava fechando seu santuário, ele escolhia o lírio mais bonito, enrolava em uma folha de jornal, se despedia tomando o bonde em direção à periferia. Um dia qualquer, desses que o céu não está azul e que o vento quer te levar pra qualquer lugar, resolvi perguntar por que ele sempre levava apenas uma flor para casa e para quem ela era, com um sorriso no rosto ele explicou que havia um coração fervendo lhe esperando chegar, e que seu coração já com alguma poeira levava um pedaço do seu dia para alimentar a brasa que mantinha a refeição sempre quente.
Pouco a pouco fui conhecendo esse jovem sábio que mesmo com tanto saber e algumas vezes notável frieza se mostrava detentor de um amor incondicional, zeloso e completo. de vendedor de flores, passou à protagonista e pouco a pouco fui vendo os dois crescerem juntos, como raiz e terra, completando-se na presença e na ausência. O tempo foi passando e as marcas começaram a aparecer no rosto daquele jovem que já não tinha mais 25 anos, foi quando a conheci e me surpreendi ao ver tudo que imaginava em um olhar, tinha olhos fugazes, nervosos que pareciam pular a cada pulso de seu sangue, sentia-se o calor que vinha daquela personalidade tão passional e então entendi o por que dos lírios. para arrebatar um coração daqueles só mesmo os lírios. E um a cada dia.
O coração dela era o que fervia na mesa posta com gosto de comida preferida. já o dele era o mais calmo, da estante. dá pra notar toda a diferença necessária para a entrega. Mas como era de se esperar, o tempo que não tinha encontrado lugar no meio disso tudo resolveu entrar em ação e pouco a pouco os lírios mantinham a temperatura ideal, mas aquele coração teimava em tentar parar de bater, apesar de tudo permanecer como sempre esteve. o senhor cruel das horas decidiu que deveria pôr fim ao que eu e você chamaríamos de amor. mal sabia que isso jamais mudaria um coração na estante, mesmo que o cheiro daquele coração na mesa ficasse apenas na memória. troquei as margaridas. não era tempo de querer pensar em calmaria. troquei pelos lírios. eles sim, sempre estariam ali, todos os dias, mantendo o fogo aceso, mesmo que o contato sincrônico e harmônico se desse através de uma enorme placa de mármore.
Mas que fique disso tudo a beleza de saber criar juntos uma história, um amor e um conto.

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